48. TROPEIROS E BOIADEIROS DE NAZARÉ

Homenagem ao meu saudoso pai, JOAQUIM TEREZA DO CARMO, falecido em 17/01/1990, que talvez tenha sido um dos últimos tropeiros/ boiadeiros de nossa Nazaré Paulista no século passado.

É prática usual dos escritores e historiadores reverenciar e homenagear como beneméritos e construtores de sua terra natal, os seus fundadores, os seus antepassados políticos, intendentes, prefeitos, vereadores, e também os religiosos, sacerdotes, vigários e padres.

 De fato, são estes os principais atores e heróis que fizeram e construíram a história de nossa terra, de nossa Nazaré Paulista, pelos seus 344 anos de existência, responsáveis pela característica de cidade interiorana, conservadora,  sem explosivo desenvolvimento, pacífica e de muitas tradições e de intensa religiosidade.

Foi assim pensando que dediquei várias postagens em meu site, (coroneloscarpinheiro.com.br) escrevendo e homenageando as seguintes atividades e personalidades:

Post nº 8. “Os Sacerdotes de Nazaré”,

         nº 11.” Os Prefeitos”,

         nº 16.” Os Vereadores”, e

         nº 39.” Os Fundadores de Nazaré”.

Entretanto, é de se ressaltar que temos outros segmentos profissionais que muito fizeram e muito contribuiram para a história e para o desenvolvimento nazareano, com existência simplista, anonimamente, sem reverência e nem sempre lembrados, e muito menos homenageados.  Refiro-me aos antigos Tropeiros e Boiadeiros de nossa terra mãe.

 Egoisticamente cito e aqui descrevo o meu pai, Joaquim Tereza do Carmo, autêntico e altivo cavaleiro, tropeiro, boiadeiro, vaqueiro, leiteiro e também toureiro, atividades estas, decadentes ou agora raras ou inexistentes.

É interessante lembrar e regredir no tempo da primeira metade do século passado quando nosso Município tinha poucas e precárias estradas de rodagem, trilhos e picadas de terra, ainda sem os primeiros veículos e nem caminhões, com seu relevo montanhoso e acidentado. Nesse cenário era muito utilizado para o transporte de carga, a tropa de burros, dos muares, que carregavam os produtos da terra, dos bairros para a cidade e para outras paragens.

De Nazaré, eram transportados os produtos cultivados e que excediam o consumo local, como o milho, o feijão, a batata, os frangos e galinhas, a cana e a cachaça, os porcos e leitões para serem vendidos nas feiras e mercados de Santa Izabel, Guarulhos, Tucuruvi e até no Largo da Concórdia.   

E estes eram transportados em cangalhas ou jacás, em lombo de burros. E a tropa seguia igual a uma fila de formigas carregando suas pesados folhas e fardos. E os muares voltavam para as origens, também carregados com outras mercadorias industrializadas, trocadas ou compradas com o resultado das vendas, como roupas, tecidos, panelas, talheres, pratos, sapatos e alimentos que não eram aqui produzidos.   

Além dessas tropas de burros/cargueiros eram os tropeiros altivos negociantes que levavam, à solta, os animais crioulos, chucros ou amansados, para serem vendidos às inúmeras olarias, areais, pedreiras e destilarias que eram tracionadas por animais.

Havia também os tropeiros de cangalhas que movimentavam as lenhas abatidas das árvores ou dos sacos de carvão feitos nas caieiras e fornos, no interior da mata para a margem da estrada, para então serem carregados nos primeiros caminhões de Nazaré e levados às padarias e indústrias paulistas ou ainda para as fornalhas de Barra Mansa, RJ. Essa é uma atividade que ainda persiste nos dias atuais. Esses são os tropeiros que ainda hoje se avistam e se deparam com os caminhões carregados de lenha pelas estradas do Município.

Resta lembrar os cavaleiros e boiadeiros de nossa Nazaré. Conduzidos e tocados, caminhando pelas estradas, as centenas de bois e vacas destinados aos abatedouros de Itaquaquecetuba, São Miguel e São José .  Em marcha batida, constante e pausada, acompanhando o cavaleiro madrinheiro na testa , tocando o berrante, seguia a boiada. Se não era a grande manada de bovinos levados para o abatedouro, eram boiadeiros que tocavam as reses para outras pastagens, para as “invernadas” para a engorda. 

   À frente, na testa do gado, ia o cavaleiro capataz que indicava o rumo e o ritmo da caminhada, chamando com seu instrumento, o berrante feito de grande chifre de boi, seguido de uma res com cincerro no pescoço e, atrás da manada iam os boiadeiros, geralmente donos dos bois, as mulas com as bruacas da comitiva, e os fiéis cachorros; estes eram importantes auxiliares para buscar as reses indisciplinadas que se desviavam do caminho e queriam desistir da indefinida caminhada.

Os condutores da boiada iam montados em fogosos cavalos, preferentemente em grandes e musculosas mulas, com suas eretas orelhas. Estes animais híbridos eram os preferidos pelos boiadeiros por suas maiores resistência ao peso, maior ligeireza e obediência às rédeas do montador. Sua andadura era mais macia.

A montaria do boiadeiro era bastante adornada, com suas partes cheias de argolas, arreio tipo cutiano, coberto de grossos e coloridos pelegos, peitoral argolado, laço de couro trançado na anca trazeira, rabicho, estribos metálicos, barrigueira, cabresto, rédeas, loros. Seus trajes eram rudes, camisa xadrezada, chapéu de aba larga, lenço no pescoço preso por amuleto de cabeça de boi, botas altas, esporas, capa tipo ponche dobrada e envolvida em lona amarrada atrás da sela, cinturão largo com bolsos para facão, revólver e balas, porta notas. Levava reio ou chicote.

Já o cargueiro que transportava a comitiva era composto de cangalha, bruacas laterais que eram caixões de madeira cobertos de couro, onde eram acondicionados os mantimentos , as panelas, pratos, fogão metálico, café, toucinho, carne de sol, sal, remédios, ferraduras, cobertores, rações e milhos para os animais.

 Dos tropeiros e dos boiadeiros eram exigidas diversas qualidades e conhecimentos; eram ferreiros, ferradores, curadores, veterinários, cozinheiros, costureiros, sangradores, cortadores de crinas e até abatedores.   Nas pousadas, eles faziam sua própria comida, à base de feijão, carne, couve e farinha. E eram também negociantes, exímios conhecedores dos caminhos mais secundários e dos locais para as pousadas. A condução da boiada ao destino podia durar vários dias, com diversas paradas em fazendas com pastagem ao gado e rancho para os pernoites dos tocadores de gado e, lembrem-se de que não dispunham de telefone celular para comunicarem-se com os familiares que lá atrás, ficaram, e estes sem notícias.

Já ao peso da mais idade, meu pai deixou de fazer as viagens com tropa e de conduzir boiada, tornando-se leiteiro. Vacas sem raça, crioulas, sem muita produção de leite, soltas no “pastinho” na área urbana da cidade, e depois na “chácara” da área rural no Mascate, depois denominada de “Sítio Tereza”. Pouca produção levada pelo caminhão leiteiro à Usina de Jacareí e parte era vendida aos consumidores, em litros ou garrafas de vidro. Atividade cansativa, pouco rendosa, com afazeres diários, sem descanso, sem folga, e sem recinto coberto apropriado. Só mais tarde foi construído um estábulo coberto. E meu pai era admirador e cuidador das vacas leiteiras. Dava-lhes nome, cuidava de suas doenças, matava os bernes e carrapatos com óleo queimado e creolina, e admirava o crescimento dos bezerros. E cuidava também da galinhada e dos leitões e porcos.  

De meu pai, lembro e guardo saudosas lembranças e ensinamentos; coragem, destemor, vigor, força, bravura, perseverança, tratamento severo e rígido, mas amoroso com os animais e com seus auxiliares.  Era também exímio domador de animais chucros, usando de meios radicais cansativos e dolorosos para “quebrar” a rebeldia do animal, e finalizava por montar e aguentar os saltos e pulos, e, sem cair, na maioria das vezes.

Quantas lembranças e quantos ensinamentos guardo de meu pai:

As reses eram adquiridas no sul de Minas. Meu pai ia até os vendedores, de ônibus, comprava, pagava em dinheiro e combinava a entrega na fazenda da Maria do Ofre, em Joanópolis. No dia seguinte seguia ao encontro à cavalo levando o meu irmão Cezar e outros capatazes, Saoca e Cezário. Vinham até Nazaré, pernoitavam para no dia seguinte seguirem pela estrada de Guarulhos até Itaquá.

Em outras boiadas, compartilhava sociedade com Manoel Pinheiro e Vicente Cândido, e levava parentes para ajudar no translado, João Tereza, Pedro Mateus .

-Uma boiada de mais de cerca de cem cabeças, levadas ao abatedouro de Itaquaquecetuba, passando por Bom Sucesso, atravessando a Via Dutra, com o tráfego paralisado, cruzando a Estrada de Ferro Central do Brasil, quando vários animais foram tolhidos pelo trem;

– As “touradas” que aqui eram erguidas, diferenciadas dos atuais rodeios, pois eram à moda espanhola, com o toureiro portando o grosso pano vermelho costurado pela minha mãe, ao lado do corpo, instigando o feroz touro a investir, e o toureiro se desviava e ao final, com o animal cansado por não atingir o alvo, juntava e agarrava o pescoço, por entre os perigosos chifres, os quais estavam encapados com capa de couro .

– Nessas touradas, havia também as montarias em animais chucros, bovinos, equinos ou asininos. E a assistência ao lado de fora da cerca, saudando o montador. Em uma ocasião lembro que meu pai, montado num feroz touro foi atingido na cabeça pelo enorme chifre, chegando a cair desmaiado. Socorrido e hospitalizado em Atibaia, graças à Deus, sem maior consequência. Em outra ocasião, num rodeio de montaria em chucros, competiu em montar na feroz e famosa mula chamada “roleta”, com prêmio no valor de um carro novo; vários peões logo cairam e meu pai foi o que mais aguentou os pulos, mas ao final também caiu, com dedos da mão machucados pelo sorfete, não ganhando o prêmio , mas arrancou aplausos dos assistentes.

Sofreu um grave acidente ao correr sobre um barranco para cercar um boi desgarrado, enroscando o pé em um arame farpado no chão, caindo com a cabeça, rolando pelo barranco. Fraturou uma vértebra cervical, ficando hospitalizado e acamado, deitado, com tração por peso e correia de aço parafusado no crânio. Sarou e continuou.

– A colheita de milho nas minhas férias de julho, quando íamos com cerca de dez muares com cangalhas e jacás em suas laterais,  buscar a metade da colheita de milho plantada no terreno do moinho, em parceria com o falecido “Zé Vitorino”. E o milho colhido era trazido ao paiol do “pastinho”, na cidade, para ser consumido, durante o ano. E o milho era em família, desempalhado à mão e debulhado na “marimba” com a socada por porrete; só bem mais tarde comprei uma debulhadora de engrenagem. E era interessante ver e assistir, por ocasião da debulhada final para abrir espaço para a nova colheita a quantidade de ratos que pululavam do milharal e subiam pelas paredes até o telhado, quando eram caçados pelos nossos espertos gatos.  

– Com o passar do tempo e a vinda das estradas asfaltadas, meu pai deixou de transportar gado à cavalo, e comprou um usado antigo caminhão/gaiola, e com ele baldeava as rezes de um sítio a outro. Com a vinda das desapropriações de terras para o alagamento da represa Atibainha, ele soltava o gado na chamada “larga”, ou seja, nas pastagens sem cerca e sem dono, até que percebeu algumas vacas tinham sido roubadas,  mortas e descarnadas. Certa noite, em conjunto com Policiais Militares de Nazaré logrou-se prender em flagrante os açougueiros bandidos. E as estradas eram rudes, e no tempo de chuva o caminhão encalhava. E na carroceria ia o cavalo arreado para reunir o gado, e na cabine, aos seus pés ia o leal cachorro; e os vários cães tinham nomes e eram bem cuidados e queridos, “recife, lobo, tango, xuxa etc.    

-Quantas denominações eram comuns aos apetrechos e que hoje não são usuais e desconhecidos os seus significados. Lembro-me de alguns deles já empregados nessa minha descrição:

freme: canivete com várias lâminas para cortar a veia jugular e sangrar o animal para ser curado. Depois era costurado e chamuscado com palha em fogo.  

pitão:toco de madeira com cordel de couro para ser torcido e apertar o focinho do animal para ser ferrado, deixando-o sofrer com a dor e não se agitar.

-arreio: sela ou cuteano de montaria do cavaleiro,

-pisadura ferida no lombo do animal causado pelo roçar da sela ou da cangalha,

-tralha; bagagem usada pelos tropeiros,

-jacá; cesto grande sem tampa feito de taquara seca trançada ,

-bruaca; caixão de madeira envolta em couro para acondicionar as tralhas.

Ao finalizar esta singela mas sincera homenagem, sensibilizo-me e me emociono ao lembrar de meu pai, num domingo, sentado em um sofá, cansado após ter tirado leite das vacas, depois de ter tomado banho e aguardando o almoço na casa de sua filha Bernadete, ao ouvir uma música sertaneja, relembrou de seus pais, de sua origem, de sua casa onde nascera, no bairro do Moinho, vi rolar lágrimas sentidas de seus olhos. “lá no morro, tem passarada, onde canta o sabiá…”Extensivas lembranças e homenagens aos seus empregados auxiliares, aos seus parentes que o acompanharam em suas viagens, aos animais, aos muares, aos seus cavalos de montaria, aos cachorros que

conviveram com ele na luta diária do JOAQUIM TEREZA, com a marca a fogo JT na anca dos animais;

Um genuíno e talvez último tropeiro e boiadeiro de Nazaré.

Até um dia para nosso reencontro! Que Deus o tenha e o recompense por sua cansada, sofrida e trabalhada vida, sempre empenhado em almejar melhores condições de vida, melhores estudos e um promissor futuro, à minha querida mãe, a mim, aos meus irmãos e aos seus descendentes.

ESPERE-ME ! . PARA JUNTOS RECORDARMOS O QUE ESCREVI E MUITO MAIS !.

Nazaré Paulista, julho de 2020

OSCAR TERESA PINHEIRO DO CARMO

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